Post by quiof on Jan 18, 2012 14:08:39 GMT -5
O que são Comics Livres?
Comics? Hein? Livres? Livres de quê? Quem as prendeu? E o mangá? E as tirinhas? Ninguém liberta os coitados?
A palavra “comics” pode parecer excludente, essa é uma impressão errada. Comics, trips, mangá, gibi, quadrinhos são sinônimos, embora sejam termos regionais. Então, libertar os comics é o mesmo que libertar todo e qualquer tipo de história em quadrinhos. A escolha do termo em inglês visa popularizar essa filosofia em todo o mundo. A intenção não é criar uma licença legal/jurídica, até porque é quase totalmente baseada no Copyleft, Queremos difundir uma maneira de encarar a produção e distribuição, tendo como suporte a comunidade que a Quadrinize! já conseguiu reunir ao seu redor.
Liberdade. Que palavra simples e, ao mesmo tempo, ilusória. Será que poderemos um dia atingir a plena liberdade nesse mundo em que vivemos?
“Comics Livres” é uma manifestação da vontade entre as partes: autor e público. O autor que utiliza o selo Comics Livres em sua obra manifesta o desejo de colocá-la sob cinco desejos:
1) desejo de que todos leiam a obra
Jamais qualquer pessoa pode ser impedida de ler uma Comic Livre. É impossível restringir o acesso por qualquer motivo.
2) desejo de que a obra seja objeto de estudo
Será possível qualquer um utilizar trechos da obra em livros e tutoriais que tratem de teoria da arte sequencial de qualquer espécie ou fim. Um livro teórico comercializado poderá reproduzir até 40% do total de páginas de uma Comic Livre para fins de análise de técnicas usadas, desde que cite nome da obra e do(s) autor(es) e como encontrá-la para ler na íntegra. Livros e guias sob qualquer licença Copyleft são livres para utilizar o quanto for necessário do conteúdo de qualquer Comics Livre.
3) o desejo de copiar e compartilhar o trabalho com os outros
Incentiva todos a distribuir e ajudar na viralização de uma obra com o selo Comics Livres, através de qualquer meio, desde que estas cinco atribuições (desejos) sejam retransmitidos e respeitados.
4) o desejo de criar, produzir e distribuir de forma colaborativa, desde que todos também compartilhem os resultados, sejam quais forem
Incentiva todos os criadores (roteiristas, desenhistas, coloristas, letristas, capistas, designers, etc) a colaborar com produções em andamento. Se os artistas não se mexerem, nada acontecerá. É deles o poder de criar obras para viralizar e tornar real este movimento.
5) o desejo de modificar o trabalho e distribuir os trabalhos modificados e derivados.
Implica na possibilidade de qualquer artista a usar uma Comic Livre para criar derivados, finais alternativos e novas histórias sobre aquele universo, desde que o criador do original e o trabalho original sejam citados, bem como os meios para encontrar a obra original.
Comics Livres também é uma tentativa de suprir uma das grandes necessidades dos iniciantes: o roteirista e desenhista se encontrarem. Aqui, pensaremos em formas de fazer com que essa busca não seja uma verdadeira quest digna de um RPG.
“Por que eu deveria fazer comics livres?”
Essa é uma pergunta que você vai responder, não eu. Mas você deve ter percebido que o modelo atual de mercado é excludente. Existe um padrão para ser publicado e isso não é negociável.
O Do it by yourself foi a filosofia do movimento punk que visava romper com a dependência ao mainstream. Nada contra recorrer a editoras para terceirizar a publicação, mas se você DEPENDE de uma empresa, uma pessoa jurídica, para que sua obra chegue ao público, então algo está errado. Os antigos contadores de histórias não dependiam de um órgão registrado para divulgar nada. Simplesmente sentavam-se ao redor da fogueira e começava a falar, atraindo os interessados.
“Sempre fiz HQs sozinho”
Existem muitos fanzineiros e artistas independentes, alguns que até mesmo publicam sob licenças Copyleft, outros publicam gratuitamente na Internet sem se importar com licenças. No entanto, Comics Livres não diz respeito apenas à gratuidade, mas principalmente ao compartilhamento, à interação e à sinergia. Aquele que não colabora com outros trabalhos NÃO está no espírito do Comics Livres, ainda que concorde com a teoria. Tampouco os que não querem pessoas colaborando com seu trabalho. Antes de criar Comics Livres, o autor deve libertar a si mesmo do egocentrismo e do individualismo. Se você está bem fazendo tudo sozinho, você não precisa do selo Comics Livres.
Não precisa necessariamente aceitar colaboração e intervenção de qualquer pessoa. Você é livre para selecionar quem mais se encaixa no perfil de sua história. Comics Livres se propõe a ser uma rede de interação e colaboradores.
“Se todos começarem a copiar as histórias uns dos outros, não haverá originalidade”
Copiar toda ou parte de um enredo, personagem ou universo é tão natural para um contador de histórias quanto respirar, e tão produtivo quanto. Isto tem que ser livre.
Não há originalidade plena. Tudo o que criamos é nosso reflexo no mundo e reflexo do mundo em nós. Se tratam de signos que interpretamos, remexemos, misturamos e estruturamos da forma que nos agrada. Mas, ainda assim, não se abre mão dos direitos de propriedade intelectual.
Propriedade intelectual
Controle sobre o uso das ideias é na verdade controle sobre as vidas das pessoas; e isto em geral torna as vidas das pessoas mais difícil.
Muitos registram suas obras para se proteger do tão temível plágio, um tipo de vilão diabólico destruidor de lares. Porém, ideias não são particulares, pertencem à humanidade. Se você ouvir uma de minhas histórias, ela passará a fazer parte do seu consciente e inconsciente, e você a vivenciará. Logo, existe uma “cópia” dela em seu “HD biológico”. Por que eu deveria querer controlar minha história se ela já faz parte de você e, quiçá, de parte da humanidade?
O que todo autor busca é que o leitor tenha uma experiência real dentro do universo da obra. Como eu posso querer controlar uma experiência que alguém viveu? Por que ele não pode escrever baseado nessas experiências? Me lembro de meus tempos de fanzineiro, quando eu vivia tão intensamente as aventuras dos meus heróis e heroínas favoritos que eu precisava escrever sobre essas experiências vividas. E, curiosamente, o fenômeno dos fanzines e fanfics dos anos de 1980 e 1990 foram em parte responsáveis pela massificação da cultura dos quadrinhos japoneses que vemos hoje..
Como Stallman relata no manifesto GNU, “a ideia de copyright não existia nos tempos antigos, quando os autores frequentemente copiavam outros autores extensamente em trabalhos de não-ficção. Esta prática era útil, e era a única maneira pela qual o trabalho de muitos autores poderia ter sobrevivido pelo menos em parte. O sistema de copyright foi criado expressamente com o propósito de encorajar a autoria. No domínio para o qual ele foi inventado – livros que só podiam ser copiados economicamente apenas pela prensa de uma gráfica – ele causou poucos danos, e não obstruiu a maioria das pessoas que liam os livros.
Todos os direitos de propriedade intelectual são apenas licenças concedidas pela sociedade porque se pensava, corretamente ou não, que a sociedade como um todo se beneficiaria da concessão. Mas, em qualquer situação em particular, temos que perguntar: nós estamos realmente melhor concedendo esta licença? Que tipo de atos nós estamos autorizando uma pessoa a cometer?”
Outros autores registram suas obras buscando proteção contra editoras que porventura venham a publicá-las sem seu consentimento e lucrem sem pagar os direitos autorais. Isso é um problema real e deve ser combatido. Mas será que essa é a melhor forma de fazê-lo? Quem está realmente sendo protegido? Talvez seja justo para as editoras tomarem certas medidas, mas isso é mesmo o ideal para suas ideias e histórias? Ou será que você prefere que elas sejam espalhadas aos quatro ventos, tendo o apoio de toda uma comunidade?
Compartilhar é preciso
Todos contam histórias desde os primórdios pelo puro prazer de contar histórias. Todos ouvem histórias desde os primórdios pelo simples prazer de se ouvir histórias. Rir, se emocionar, aprender com elas. Todos compartilham histórias desde os primórdios, pelo puro prazer de levar adiante a experiência que tiveram ao “vivê-la”. Por que impedir esse processo, de milênios de tradição, criminalizando o compartilhamento?
O objetivo autoral de compartilhar ideias é o que menos se vê hoje em dia. Vender licença de uso não é e nunca será sinônimo de compartilhamento. Se a motivação de um escritor for apenas ganhar com direitos autorais, o resultado tende à frustração. O melhor texto, seja ele literário, acadêmico ou de não-ficção, é aquele que tem algo realmente interessante a dizer. É aquele que se espalha, que é comentado, difundido livremente e que gera novas ideias. Se os autores (ou os herdeiros deles) se prendem mais na questão mercadológica, estão cometendo um grande erro. Estão confinando seus trabalhos, ou restringindo e limitando o acesso, em muitos casos, elitizando o conhecimento e o entretenimento.
“Em uma produção coletiva, quem é o lider?”
O trabalho colaborativo deve ser auto-gerenciado, ou seja, cada um sabe qual é o seu papel e o executa, por vezes auxiliando no que puder os outros departamentos, caso sinta que é capaz de fazer isso. Não há liderança e todos os que participam do projeto são co-autores e devem sempre ser creditados.
O problema da distribuição em massa
Muitos poderão dizer que o atual modelo editorial é vantajoso pois permite uma distribuição massiva. Mas ao possibilitar a produção e distribuição em massa, a indústria do entretenimento não só institucionalizou uma alienação entre o artista e a sua obra, como também uma alienação entre o artista e seu público por reduzir a arte produzida a um mero bem de consumo com a finalidade única de gerar lucros. Este processo se deu basicamente pela apropriação do direito intelectual do artista pelas grandes corporações, a que já nos acostumamos e, pasme, até mesmo alguns de nós a defendemos frivolamente.
As Comics Livres se propõe a ter um alcance inicial menor e chegar mais longe gradualmente por meio do relacionamento dos autores com o público e da viralização da obra. E, claro, nada impede que uma boa obra acabe caindo nas graças das multidões. Para isso, ela deve ser bem elaborada e ter realmente algo a dizer.
Não tenham medo de escrever obras regionais que possam ficar limitada à sua localidade. Ganhar grandes multidões nem sempre é o que uma boa história precisa para sobreviver. Ela só precisa ficar marcada nas mentes e corações, não importa de quantas pessoas. Por isso, fazer Comics Livres é um desafio autoral. Você pode ser capaz de criar algo que se espalhe pelo mundo, mas é capaz de escrever algo que marque vidas? Isso vale mais que estar à venda em todas as grandes lojas.
Fama
A fama pode ter seu lado positivo, mas ao mesmo tempo é uma ditadura. Famosidades são como um produto industrial que precisam ser fabricadas de tempos em tempos, acompanhando as tendências da atualidade (e se começar a pensar de onde vêm essas tendências, começará a ter câimbras no cérebro). Então, para atingir a fama, você invariavelmente terá que se adaptar de alguma forma a algo. Talvez isso seja interessante para algum de seus projetos, mas você quer realmente viver sob essas imposições?
Quando uma publicação editorial se torna um best-seller, geralmente significa que a editora conhece bem o mercado através de pesquisas, estatísticas e tem boas estratégias de marketing. Quando um trabalho totalmente autoral e independente alcança algum status de fama, significa que o autor e seus colaboradores estão realmente em sintonia com seu público.
“Os autores não merecem uma recompensa pela sua criatividade?”
Se alguma coisa realmente merece uma recompensa, é a sua contribuição social. Criatividade pode ser uma contribuição social, mas somente na medida em que a sociedade é livre para usufruir dos resultados. Se os autores merecem ser recompensados por criarem histórias inovadoras, da mesma forma eles merecem ser punidos se eles restringem o acesso a estas histórias.
Extrair dinheiro dos leitores restringindo o uso da obra é destrutivo, porque as restrições reduzem a quantidade de vezes que a obra pode ser lida. Isto reduz a quantidade de bem-estar que a humanidade deriva da história.
Especificamente, o desejo de ser recompensado pela minha criatividade não justifica privar o mundo em geral de tudo ou parte da minha criatividade.
Restringir a cópia não é a única estratégia para garantir as vendas de quadrinhos. Ela é a mais comum porque é a que traz mais dinheiro. Se ela fosse proibida, ou rejeitada pelos consumidores, as editoras iriam mover suas bases para outras formas de organização que hoje são utilizadas menos frequentemente. Existem várias formas de se organizar qualquer tipo de negócios. (Stallman – paráfrase)
“Não irão todos parar de fazer HQs sem um incentivo monetário?”
Na verdade, muitas pessoas desenham e escrevem sem absolutamente nenhum retorno financeiro, simplesmente porque amam fazer isso e não poderiam fazer outra coisa. É o que eles são. Mesmo no Brasil há diversos exemplos de autores que encontraram um meio de ganhar dinheiro e relativa fama através de HQs gratuitas.
“Nosso mercado precisa de bons quadrinhos urgentemente. Se as boas obras que surgem restringem o acesso, temos que aceitar essa realidade”
Ou podemos construir nós mesmos nossa própria realidade e mostrar que é possível fazer boas HQs sem cobrar nada dos leitores.
“Os quadrinistas tem que ganhar a vida de algum jeito.”
Existem muitas maneiras pelas quais um quadrinhista pode ganhar a vida sem cobrar dos leitores pelo acesso ou vender um direito de cópia a uma empresa. Estes modos são comuns hoje porque são os únicos apresentados pela sociedade como economicamente viáveis e por darem um retorno mais rápido, não porque são os únicos modos de se ganhar a vida. É fácil encontrar outros modos de ganhar a vida se você deseja encontrá-los. Eis alguns exemplos que pretendemos tornar realidades cada vez mais presentes:
Produtos licenciados, derivados de sua obra.
Sites de “gibiteca online” que cobram mensalidade para acessar todo o material e todos os autores ganham uma fração do total arrecadado. Cada autor terá que disponibilizar sua HQ de graça em algum lugar para utilizar o selo Comics Livres; ainda assim, uma biblioteca virtual paga pode ser útil para o leitor se ela for funcional, tiver muito conteúdo, recursos atraentes e credibilidade.
Sites de biblioteca de HQs, onde cada leitor, se quiser colabora com doações com o valor que considerar justo para o artista.
Comercializar versões impressas de luxo e coletânia para os fãs.
Na Internet tudo isso é bonito e viável. Mas e no mundo físico?
Para ser Comics Livres, os impressos devem ser gratuitos ou vendidos a preço de custo. Você poderá vender edições especiais de luxo (por exemplo, em papel de maior qualidade ou álbuns contendo a obra completa) visando algum lucro, desde que as mesmas histórias estejam disponíveis na forma também impressa com todas as suas características gratuitamente ou a preço de custo. Existem meios para editar e imprimir revistas até mesmo a custo zero:
Colaboratividade na impressão de almanaques, ou seja, histórias curtas de diversos autores reunidas em uma única revista.
Colaboratividade entre leitores, conhecida hoje em dia como crowdfunding.
Procurar por patrocinadores.
Venda coletiva, um sistema em que só é realizada a impressão quando for vendida uma quantidade de cópias que cubra o custo da tiragem.
Recentemente, houve o lançamento de um livro chamado “Livro Pirata”. É uma obra artística colaborativa de tiragem pequena financiada por crowdfunding. Quem quisesse, poderia comprar o original. Mas quem não quisesse ou não pudesse, poderia tirar cópias no próprio local do evento. A máquina da fotocópia também foi financiada por crowdfunding.
Talves muitos não concordem ou até se ofendam com esse texto. Se você chegou até aqui e não for um destes, ou ao menos esteja refletindo sobre essas palavras, ainda que sem decidir se concorda ou não com elas, lhe convido a participar da melhoria dessa proposta. Não visamos estabelecer o Comics Livres como paradigma, nem mesmo destruir o modelo editorial existente. Ninguém precisa publicar suas HQs apenas com o selo Comics Livres. Mas acredito que vale a pena todos os artistas experimentarem ao menos uma vez.
Gostaria de acrescentar algo? Discutir algum dos tópicos? Sugerir alterações? Fique à vontade. Vamos debater e construir juntos uma nova possibilidade de produção e publicação de histórias.
www.quadrinize.com/2011/12/09/manifesto-comics-livres-v-beta/